A Covid-19 alterou costumes e acelerou mudanças em diversos segmentos da sociedade. Empreendedores e empresas inovaram na tentativa de manter os vínculos fortalecidos, como era no período pré-pandemia, ou para manter a sobrevivência no mercado, assimilando as orientações deste.
Muitos negócios precisaram se adaptar à nova realidade — cautelosa em função dos protocolos sanitários. Outros, conseguiram colocar na prática modelos de operações que já existiam e encaixaram perfeitamente com as peculiaridades da pandemia. Em Porto Alegre e região metropolitana, estabelecimentos e indústrias voltados à comercialização de alimentos e bebidas vivenciaram momentos de dificuldade e transformação.
Na perspectiva do consumidor, hábitos como navegar em marketplaces como iFood e Rappi, entrar em contato com o atendimento via WhatsApp e ir atrás de um produto específico e encontrá-lo em sites de empresas tornaram-se comuns. Entretanto, a experiência de sair de casa para tomar uma cerveja com os amigos e degustar a comida no próprio restaurante permanece única. Em suma, o presencial e o virtual foram valorizados, e as empresas e indústrias de alimentação localizadas na capital gaúcha seguiram esse cenário.
Para Roger Klafke, especialista em Alimentos e Bebidas do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Rio Grande do Sul (Sebrae-RS), a mudança de comportamento do consumidor é notória. Ele também destaca o surgimento de novos negócios e a transformação “brutal” na operação de determinadas empresas do meio.
Uma das tendências observadas foi a disseminação da venda de refeições prontas, como marmitas, produtos congelados e doces, entre outras. “Na pandemia, muita gente perdeu emprego e precisava se sustentar, e uma saída foi fazer comida”, frisa o especialista do Sebrae-RS — entidade focada no desenvolvimento do empreendedorismo e acompanhamento de negócios do setor.
A partir dessa necessidade, o produto elaborado pode ser favorável ou desvantajoso para o cliente em termos de preço. Oscar Frank, economista-chefe da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre (CDL-POA), vai ao encontro da exposição feita por Klafke no parágrafo anterior. Contudo, o economista da CDL analisa o outro lado da moeda: a cautela do consumidor com intuito de manter-se financeiramente saudável. “Na medida que pesa no orçamento, o consumidor abre mão do mais caro para manter sua sobrevivência”, sintetiza.
Em Porto Alegre e Região Metropolitana, houve um boom de empreendedores que resolveram colocar a mão na massa para superar as dificuldades impostas. Klafke aponta que houve um crescimento de quase 25% no registro de novos negócios dentro da cadeia de alimentos em 2021, na comparação com 2020. Eram 24 mil empresas voltadas ao abastecimento de comidas e bebidas no primeiro ano de pandemia, e no segundo, esse número passou para 30 mil, sendo 75% microempreendedores individuais (MEIs). Entre os 10 segmentos com maior concentração de empresas na Capital e municípios vizinhos, 80% dos 30 mil negócios são relacionados com padaria, confeitaria, indústria de massa e doces.
Auxílios governamentais prestaram apoio importante às empresas
Em linhas gerais, o especialista em Alimentos e Bebidas do Sebrae-RS pontua que o período foi marcado por ajuda financeira prestada ao setor. Muitas empresas do ramo alimentício precisaram recorrer ao auxílio dos governos federal, estadual e municipal para sobreviverem às restrições de circulação impostas pela pandemia. No entanto, ele ressalta que o momento atual ainda apresenta dificuldades.
“As empresas que seguem operando estão muito endividadas. Boa parte delas tem prejuízo e outra parte opera com lucro um pouco abaixo do patamar pré-pandemia”, resume Roger Klafke. O Sebrae, inclusive, realiza trabalhos estratégicos voltados à elaboração de projetos de desenvolvimento a longo prazo junto aos negócios da área de alimentos e bebidas. O objetivo é visar a expansão das marcas sem perder o foco da saúde financeira.
Conversando com empresários e empresárias do setor de alimentos e bebidas de Porto Alegre e região metropolitana, a reportagem do Jornal do Comércio constatou uma opinião em comum: a primeira metade de 2020 foi a época mais complicada. O medo gerado na população a partir do desconhecimento com relação ao novo coronavírus fez as pessoas permanecerem confinadas em casa, com poucas possibilidades de saírem às ruas. Comércio, varejo, serviços… No começo da pandemia, as regras restritivas perduraram, com o objetivo de evitar a disseminação do vírus.
Ao passo que o Rio Grande do Sul confirmou o primeiro caso de Covid em 10 de março de 2020, Porto Alegre registrou sua primeira infecção da doença no dia seguinte ao anúncio do governo gaúcho. Ainda que março de 2021 tenha sido o mês com recorde negativo de internações em leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e óbitos tanto no Estado quanto em Porto Alegre, os primeiros meses pandêmicos foram de fechamento total das operações e mudanças drásticas na nossa forma de viver.
Outro ponto de interrogação que persiste após quase dois anos de convívio com o coronavírus é um problema crônico de gestão — que acomete empresas de diferentes esferas —, relacionado à infecção dos profissionais. Quando manter o modelo híbrido? Quando voltar ao presencial? É hora de voltar ao home office? Somado a essas perguntas, as orientações preventivas à Covid podem mudar rapidamente e autoridades políticas ou sanitárias divergirem quanto ao período de cumprimento de isolamento social, por exemplo.
Hoje, a empresa do ramo alimentício que não levar em consideração todas as circunstâncias anteriormente mencionadas, passará por dificuldades, sem dúvida. O empreendedor e a empreendedora desse meio precisam saber lidar com essa inconstância do cenário pandêmico, buscando um negócio flexível, que tenha à disposição operações que se encaixem com as peculiaridades do momento. Como exemplo, houve um crescimento das empresas que ampliaram sua rede de contato com o cliente através das redes sociais e marketplaces, acessíveis através de aplicativos nos celulares.
Por outro lado, como ressalta Roger Klafke, “os serviços de alimentação dentro de universidades, escolas, clubes, foram extremamente impactados porque ficaram muito tempo fechados”, assim como pequenas cervejarias, que “foram impactadas negativamente”, uma vez que “boa parte delas vendiam cervejas em barris, que ficaram muito tempo fechados” em razão das medidas de distanciamento social na Capital.
Na sequência, saberemos mais sobre três empresas com fábricas em Porto Alegre, sendo duas delas no 4º Distrito – região da cidade que abriga os bairros Floresta, Humaitá, São Geraldo, Farrapos e Navegantes, que está em processo de revitalização -, e que souberam como manejar os desafios impostos pela pandemia. Uma delas atua no segmento de produtos congelados, enquanto outra é focada em snacks, sendo ambas movidas pelo propósito de oferecer uma refeição saudável, que cumpra uma série de requisitos nutricionais. Já a terceira é uma rede de franquias de restaurantes com cervejarias que vem fazendo sucesso na Capital.
4Beer – Um local para vivenciar e saborear a cerveja
Rede de franquias de restaurantes com cervejarias em Porto Alegre, o 4Beer preza muito pela experiência de reunir as pessoas, como afirma o administrador Rafael Diefenthaler, um dos donos da cervejaria, que reforça a descrição que consta no site do restaurante, de ser “um local para se vivenciar momentos e beber cerveja”. Ao lado dele, fazem parte da sociedade os arquitetos Caio de Santi e Cristiano Santos. A rede surgiu em 2016, através da união de duas cervejarias: Diefen Bros, formada pelos sócios Rafael e Daniel, e a Polvo Loco, representada por Caio e Cristiano.
O 4Beer é hoje uma das sensações gastronômicas da capital gaúcha para quem busca se juntar com os amigos e as amigas para beber e comer. No momento, a empresa possui cinco unidades em atividade, estando presente nas zonas norte, leste e sul da cidade.
Um dos restaurantes fica no bairro São Geraldo, no 4º Distrito, tendo sido a primeira cervejaria a fincar raízes na região, no ano de 2016, quando os projetos de revitalização “ainda estavam engatinhando”, como brinca Rafael. Para o administrador, o fato do 4D ser bem localizado — trecho de saída e chegada na Capital, próximo de bairros como Centro Histórico e Moinhos de Vento — foi um dos motivos para a escolha da localização. Mas há outro: “eram prédios mais antigos, maiores, com cara industrial, com aluguéis que valiam a pena.”
Em 2020, a fábrica do 4Beer (localizada junto à sede no 4º Distrito), foi ampliada no intuito de permitir a expansão das operações da cervejaria, uma das metas do trabalho desenvolvido junto ao Sebrae-RS, como relata Rafael. Para encarar os desafios da pandemia, uma das estratégias da cervejaria foi trabalhar a fidelização do público, e uma das formas encontradas foi enviar um QR code nas encomendas via e-commerce que dava acesso a playlists criadas pelo próprio restaurante.
Rafael frisa que a loja online passou a funcionar em 2019, e quando entrou a pandemia, o 4Beer estava com um passo à frente nesse quesito, o que trouxe bom retorno à cervejaria em um primeiro momento. Contudo, como muitas empresas do ramo de alimentos e bebidas, também necessitou de ajuda financeira de órgãos públicos no intuito de permanecer em pé.
“A gente precisou de auxílio do governo. Mas nós fomos atrás de tentar levar a experiência até os nossos clientes. Criamos um aplicativo próprio de entregas, além de estarmos nas plataformas de delivery”, destaca um dos quatro sócios. Mesmo adotando meios para superar as dificuldades relacionadas à Covid, o 4Beer segue se recuperando financeiramente.
“Em 2020, nós tivemos um faturamento 70% abaixo na comparação com 2019. E em 2021, foi algo em torno de 30% abaixo na comparação com 2019”, conta Rafael.
Alimentos saudáveis são a marca da FeelJoy
Operando desde 2015, a FeelJoy atua na venda de produtos congelados. Refeições prontas e das mais variadas, como creme de ervilha, filé de frango grelhado, escondidinho vegano, carne de panela e muffin de limão com farinha de amêndoas, entre outras opções, constam no cardápio. Um dos diferenciais, segundo Carla Basotti, proprietária da marca, é oferecer uma comida “ultracongelada e embalada a vácuo”.
Antes de colocar a FeelJoy em atividade, Basotti afirma que a empresa já vinha sendo pensada e estruturada desde 2012. A marca surgiu com a finalidade de preencher uma lacuna existente no ramo alimentício, segundo Basotti. “A empresa foi pensada em fornecer alimentos congelados saudáveis que nós não encontrávamos no mercado. Foi uma necessidade pessoal minha e da família. Eu parei de trabalhar na empresa que eu estava, minha formação é em contabilidade”.
A ideia de prover uma alimentação saudável é uma de suas prioridades. “São (produtos) próprios para celíacos (pessoas com intolerância ao glúten), 100% naturais e tentamos trabalhar com orgânicos e com fornecedores locais sempre que possível”, revela a dona da FeelJoy, que no início, era chamada de ProLight Alimentos.
Contudo, a nomenclatura “light”, de acordo com Basotti, acabava restringindo o público. “As pessoas pensavam que por ser light, não deveriam comer porque não faziam dieta. Então mudamos para FeelJoy em 2018”. No começo das operações, ela tomava conta do negócio junto com o marido, que acabou saindo da gerência da marca.
A fábrica da FeelJoy fica na avenida Plínio Brasil Milano, no bairro Higienópolis, em Porto Alegre. Atualmente, a marca disponibiliza seus produtos em três frentes: pelo e-commerce, por redes do varejo e por ponto físico. As vendas online, de acordo com a empresária, representam o maior volume de faturamento, e uma das razões apontadas foi o cuidado em aprimorar o website.
Logo que a Covid-19 se disseminou, a FeelJoy já estava preparada para lidar com um cenário totalmente novo para as empresas de alimentos e bebidas. Ainda que a loja física tenha sido prejudicada, as formas de operação da marca não sofreram mudanças drásticas. O e-commerce manteve bons resultados, e a receita em decorrência do varejo também aumentou, mas exigiu maior esforço a fim de atender à demanda das grandes redes.
“Nós já estávamos bem estruturados (para encarar a pandemia), mas tivemos um desafio muito grande para atendermos o varejo. Foi um problema bom de se resolver”, ressalta Basotti, que orgulha-se de ter conseguido colocar seus produtos à venda em uma grande rede de supermercados da capital gaúcha em 2020. Nesse mesmo ano, a empresa de alimentos ultracongelados apresentou faturamento de R$ 800 mil, valor 60% superior na comparação com 2019 e que permaneceu praticamente igual em 2021.
Quando questionada a respeito do crescimento da empresa, que iniciou suas operações há sete anos, a dona da FeelJoy fala que houve aumento no número de pessoas empregadas e revela planos de expansão, inclusive para outros estados do Brasil. “Em 2015, era eu, mais uma estagiária e três cozinheiros. Hoje somos entre oito aqui dentro, mas existe toda uma rede que faz o site funcionar: escritório jurídico, marketing etc. Nosso maior volume de vendas está em Porto Alegre, mas estamos expandindo para redes de fora do nosso Estado, como Santa Catarina, Paraná e São Paulo.”
Mesmo em meio à turbulência causada pela pandemia do novo coronavírus, a FeelJoy é um dos exemplos de empresas do ramo alimentício de Porto Alegre e região metropolitana que souberam adotar estratégias de mercado compatíveis com o período movido por complicações e dramas sanitários. Com uma certa dose de otimismo, Basotti menciona uma das crenças que a move. “Para quem trabalha direitinho e oferece um bom produto, tem mercado sim. Acredito muito no meu produto.”
Empresa conquistou primeiro mercados fora do Rio Grande do Sul
Focada em uma alimentação saudável e prática, a Arbolê Alimentos atua desde 2014. A gestão da marca cabe aos sócios Sandra Thebich e José Luiz Thebich, casal que atua no ramo alimentício há 29 anos. Enquanto Sandra, que é formada em jornalismo, cuida mais da parte comercial, José Luiz encarrega-se das áreas administrativa e financeira.
Os produtos da Arbolê são pacotes com lascas crocantes, vendidos em cinco sabores diferentes: alho poró, gergelim, lemon pepper, manjericão e páprica picante. Livres de glúten, açúcar, soja e lactose, as lascas “combinam com todos os momentos do dia”, nas palavras de Sandra, que acredita ser um diferencial do produto, podendo ser consumido no café da manhã, almoço, lanche e até na janta, segundo ela.
Atualmente, a empresa conta com uma fábrica localizada na avenida Maranhão, no bairro São Geraldo (zona norte da Capital). Em 2017, houve uma mudança de endereço para uma fábrica com maior capacidade industrial, consequência da expansão das operações da Arbolê, que “já iniciou expandindo”, como destaca Sandra. As operações não ficaram restritas à Porto Alegre e região metropolitana, muito pelo contrário.
“Logo no começo, a nossa maior praça era o Rio de Janeiro. Nós já atendíamos outros estados (na época)”. A Arbolê, mesmo com as raízes fincadas em Porto Alegre, começou desde o princípio a visar as demais regiões do Brasil. Hoje, a empresa tem aproximadamente 1.000 pontos de venda no País, não estando presente apenas nos estados de Tocantins, Piauí, Sergipe e Acre.
Assim como a FeelJoy, a Arbolê trabalha focada nas vendas pelo site e também para o varejo que vão de pequenas lojas até as grandes redes , como relata a empresária, acrescentando que o portal da marca passou por um processo de reformulação a partir de uma mudança notada quanto ao comportamento dos consumidores.
“Nós somos uma indústria forte no B2B (Business to Business, quando empresas vendem diretamente para empresas) e vemos que o B2C (Business to Consumer, quando empresas vendem para o consumidor final) está crescendo organicamente, porque o consumidor está buscando o canal. Desde que nós começamos, o consumidor vem atrás do nosso produto”, enfatiza.
O começo da pandemia, como foi exposto anteriormente, foi o mais difícil para a empresa. Sem saber o que esperar quanto à disseminação do vírus pelo Brasil, muitas lojas parceiras da Arbolê espalhadas pelo país encerraram as atividades. “Nos primeiros 60 dias de pandemia, 10% dos nossos clientes fecharam”, relata Sandra, que na sua visão, viu Porto Alegre não sofrer tanto com as consequências da Covid quanto às demais regiões quando as medidas sanitárias mais drásticas foram implementadas.
Quase dois anos depois, entretanto, ela conta que, em janeiro de 2022, teve 50% da equipe de funcionários afastada por causa da Ômicron, sendo um problema que continua a gerar muita dor de cabeça nos gestores do ramo alimentício. A variante, mais infecciosa, porém, menos letal, só não atrapalha mais em função de um fator crucial no processo: o avanço da vacinação.
Em 9 de fevereiro de 2022, conforme dados disponibilizados pelo governo federal, mais de 150 milhões de brasileiros haviam recebido as duas doses ou dose única da vacina contra o novo coronavírus, ou seja, cerca de 70% da população do país havia sido totalmente imunizada (desconsiderando as doses de reforço). Em Porto Alegre, o segundo mês do ano registrava quase 90% dos seus cidadãos com esquema vacinal completo.
Em 2021, a marca de lascas crocantes viu sua receita chegar a aproximadamente R$ 1 milhão, terminando o ano com boas projeções, apesar das complicações impostas pela pandemia. “Esses dois anos foram difíceis, desafiadores, mas nós não perdemos o foco de crescimento, o foco do mercado. A gente vem trabalhando em pesquisas de desenvolvimento para novos produtos”, informa Sandra, resumindo também como foi o período vivenciado pelos negócios do ramo alimentício. “A empresa, que estava bamba das pernas, sofreu muito, e quem estava mais sólido se segurou”.
Para muitos empreendedores, ano será para colocar as contas em dia
Fonte: Jornal do Comércio
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